sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Iguais na diversidade ou, pra quê separar se junto é mais gostoso

Desde os tempos mais remotos o agrupamento corporativista se mostra um dos movimentos mais fortes e incoerentes dentro do universo profissional. As corporações de ofício, na idade média, agregavam aqueles especialistas da manufatura que viam nessa agregação sua força e seu símbolo de status.

De lá pra cá pouco se mudou. Claro que as corporações foram se especializando cada vez mais, a ponto de termos uma corporação composta às vezes de apenas de 2 indivíduos (há casos sérios de egocentrismo em que um profissional se sente a própria corporação). Mas o sentido de exclusividade ou seletividade é o mesmo do período medieval: somos únicos e juntos podemos mais.

Certa feita, num grande hospital de uma cidade qualquer, um paciente desafiava o conhecimento da classe médica. Todos tentavam descobrir o que afligia aquele homem. Especialistas das diversas áreas da medicina eram chamados, os enfermeiros e os psicólogos tentavam em vão colocar suas opiniões, mas eram calados pelos semideuses-médicos; até que a nata da classe dos médicos (atualmente essa é uma característica de nosso tempo, dentro de uma classe há outra ainda mais seleta), composta pelos neurocirurgiões, chegou e assumiu de pronto a tarefa de diagnosticar e tratar o paciente-incógnita. Chegaram e já foram excluindo todos os que não beberam de sua parcela exclusiva da ciência.

Não houve reclamação de ninguém. Os outros médicos se resignaram às suas naturezas de semideuses, os enfermeiros e psicólogos, já acostumados à condição de mortais, continuaram suas tarefas rotineiras. Todos certos que os deuses neurocirurgiões resolveriam o problema.

Dias e dias se passaram, conferências e conferências foram feitas e nada de se saber o que causava a enfermidade do já quase defunto. Aquilo angustiava os neurocirurgiões, como pode uma doença não se mostrar para tanto saber agregado. Mas ela se mostrava, eles apenas não a enxergavam, cegos pela arrogância de excluírem outros conhecimentos. Não viam que o pé do paciente já estava completamente roxo, necrosado, e aquilo avançava intermitentemente rumo ao resto do seu corpo. O enfermo não conseguia falar, ora estava convulsionando, ora era impedido ou ignorado pelos neurocirurgiões – está delirando, diziam.

Numa manhã ensolarada, passava pelo quarto do paciente um recém-formado médico ortopedista. Sentindo o horrível cheiro que dali exalava, abriu a porta e brincou: pessoal é melhor pararem de pensar um pouco, pois já está fedendo. Estava na sala a alta cúpula da neurocirurgia, mas também residentes, claro que residentes quase neurocirurgiões. Rapidamente nosso jovem ortopedista bateu os olhos na perna do homem que estava mais morto que vivo – como vocês não viram isso, gritou. De pronto chamou dois enfermeiros e um anestesista, todos agiram ágil e habilmente, o ortopedista pegou sua serra elétrica e, sob os olhares atônitos dos neurocirurgiões, manipulou-a de forma precisa cortando a perna do convalido na altura da metade do fêmur. No outro dia, o hospital continuou o mesmo, com todos fazendo suas tarefas rotineiras. O paciente-incógnita se recuperava impressionantemente bem.

Moral da história: uma instituição é composta de diferentes saberes, todos igualmente importantes e necessários. Algumas vezes é preciso uma perna necrosada e uma serra elétrica para nos mostrar que não somos deuses.

Abraços

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