sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Luana Piovani e um conceito que se vai

É fascinante quando um preconceito é desfeito. Sentimo-nos mais livres, abertos para o novo, para enxergarmos mais longe. O processo de quebra do preconceito é de uma beleza contagiante em que somos arrancados daquela certeza arraigada e moldada pela visão estreita de algo. E quando o medo se esvai uma alegria se instala e nos entregamos ao novo, de forma intensa.


Não queria ser rico, na verdade tinha medo de ser rico. Me apavorava ter mais que os outros e sempre me sentia culpado quando comprava algo caro. Enquadrava a riqueza nos aspectos pejorativos da vida. E nesse sentido, queria continuar pobre. Como todo preconceito, olhava o "ser rico" de forma bitolada, unidimensional, não enxergando seus diversos ângulos. Estava cego, ou melhor, mantinha meus olhos fechados.


Numa tarde o processo de transformação começou, instigado por um colega e reforçado por um livro (esse objeto destruidor de conceitos). Em menos de uma semana a ruptura estava instalada: quero ser rico, na realidade vou ser rico, estou cuidando disto. Cada um tem seu conceito de riqueza; alguns querem comprar um iate, um jatinho, ter um carro de luxo do ano ou comer a Luana Piovani, outros querem simplesmente viajar de vez em quando e conhecer a Toscana, comprar queijos e vinhos melhores ou mesmo não se sujeitar a dentista do Ipasgo. Mas todas essas vontades dependem da produção riqueza e de seu símbolo maior: o dinheiro.


Livre de um dos meus preconceitos sinto-me bem melhor e, agora, mais preparado para desfazer-me de outros. Mais que antes, acredito que a mudança expande nossos horizontes e refutar uma crença, que de certa forma nos definia, mostra o quão estamos em constante aperfeiçoamento.


Abraços

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

“Madame Bovary c’est moi”

Li recentemente Madame Bovary de Gustave Flaubert. Para quem gosta de ler, um livro fundamental. As agonias de Emma em busca da felicidade por meio do amor e de amantes, dão o tom da obra. É possível notar o trabalho de Flaubert com as palavras, sempre procurando e colocando as melhores.

 

Emma é uma heroína que extrapola as margens da moral em uma sociedade repressora e que faz da mulher um simples complemento da casa e do marido. Não aceita a monotonia do casamento burguês e corre em busca de uma liberdade libertina, que por vezes a ilude.

 

O livro é muito bem escrito e tem referência em alguns programas como Os Sopranos, que adoro, e no filme Pecados Íntimos, que é fantástico. Alias, as referências denotam a importância desse livro, além das citações explicitas em diversos meios, depois que o li, percebi uma série de menções implícitas em novelas, contos, revistas, livros, filmes. Inclusive, a primeira impressão que tive (exagerada, concordo) depois que terminei a leitura foi que não há mais grandes coisas a se escrever, e olha que ainda não li Shakespeare, Camões, Dostoievski, Machado, etc., etc., etc.

 

Abraços

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Ilusão de Ótica

Tenho medo dos meus olhos me traírem. Quando vou atravessar uma rua olho duas vezes mais por causa desse meu temor. Não é que meus olhos tenham um defeito grave, minha miopia astigmática é de dois graus e meio, logo, meus óculos corrigem bem esse desvio, apesar de estarem um pouco defasados. O grande problema é o olhar, que pode cometer enganos e me colocar numa enrascada.

 

O olhar pode esconder grandes falsidades e ludibriar o cérebro. Será que aquele carro está realmente distante? Será que sua velocidade permite que eu atravesse a rua e chegue ao meu destino? Para quem anda de bicicleta essas questões são bem relevantes. Por isso a confiança naquilo que se ver é fundamental, uma questão de vida. Mas em algumas ocasiões arrisco a atravessar a rua, não deixando que a possível ludibriação do olhar me impeça de avançar um cruzamento. Enfrento meu medo, dou crédito aos meus óculos e prossigo. É preciso assumir que algumas imprecisões do olhar fazem parte da vida, são elas que nos surpreendem e tornam o pedalar mais interessante.

 

Abraços

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Inspiração de Flaubert

E. B. levantou da cama suada e exasperada. Não conseguiu dormir nem três horas e o barulho que os gatos faziam a incomodava demasiadamente. Pela janela via os animais irrequietos, atordoadamente atraídos pelo cheiro que uma gata no cio exalava.

 

A gata no cio se contorcia de vontades e seus gestos demonstravam claramente para E. B., que sua agonia residia na certeza de que os 14 gatos ao seu redor não conseguiriam aplacar sua volúpia. E. B. se excitava com aquela visão e, impacientemente, entendia o desespero da gata no cio e sabia mesmo que os gatos não seriam suficientes. Também já havia sentido essa urgência. Aliás, sentia-a agora. Foi o que a acordou: outro sonho de entrega total em que, paradoxalmente, controlava todas as suas preferências.

 

Era mais um sonho, como tantos outros, que a acordara, mas agora a visão da gata no cio havia reforçado sobremaneira as imagens do subconsciente. Sua vontade era a mesma da gata. O desespero daquele animal correspondia ao mesmo sentimento que ela sentia. Contudo, E.B. invejava a gata no cio por ela possuir agora, ainda que insuficiente, 14 gatos ao seu dispor. Nesta noite, E.B. tinha apenas ela mesma.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Sobre séries

Cuidado, alguns spoliers

Lost está de volta. Depois de quase um ano de espera, turbinada pela ansiedade que o último episódio da terceira temporada gerou, saciei minha vontade de rever Jack, Kate, Locke, Hurley, Ben, Saywer e companhia.

 

Alguns reclamam que Lost caiu no marasmo e inunda a história com mistérios e mais mistérios, pra mim é uma gratificação assistir os enigmas formando um conjunto que no final nos dará todas as respostas. Assim acredito. Os subtendidos sempre me agradaram, eles nos obrigam a recriar a história à nossa maneira, é como se cada um criasse um mundo a partir das suas sensações ao assistir. E cada um tem as suas.

 

Nesta temporada os flashbacks dão lugar aos flashfowards (que mostram o futuro daqueles que saíram da ilha). Uma reviravolta na forma de contar a história que me deixou estupefato e extremamente fascinado ao final da terceira temporada, com Jack gritando para Kate: "We have go back, Kate. We have go back!". Simplesmente fantástico.

 

Abraços

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

A Primeira Vez

Estava caindo uma chuva forte na cidade quando ela entrou no cômodo. O ambiente era apertado e bastante iluminado. Ele a esperava elegantemente sentando em sua cadeira de couro legítimo importada da Argentina. Cumprimentaram-se sem muito entusiasmo, mas com certa ternura. Ela mais nervosa que o habitual, ele, concentrado e quieto como de costume, tentou acalmá-la:

 

– Então hoje é o grande dia, hein? Como está se sentindo?

– Um pouco apreensiva... Nunca passei por isso.

– Fique tranqüila, dará tudo certo.

 

Dito isso convidou-a para deitar-se mais confortavelmente e foi preparar o que tinha que ser feito. Quando voltou, ela estava olhando para o teto numa expressão que denotava insegurança. Tentou relaxá-la, mas num impulso já se colocou por cima fazendo com que ela tencionasse seu corpo e cerrasse seus punhos. Seu instrumento no lugar certo a fez abrir a boca mais que o necessário. Seus olhos buscavam o teto, porém a cabeça daquele homem cobria todo seu campo de visão. Não sentia dor, mas o barulho que ele produzia a incomodava por demais, fazendo com que seu subconsciente, moldado pela sociedade, criasse um mal estar traumatizante.

 

No fim de trinta minutos ele estava suado e ela trêmula, e ambos estavam aliviados.

 

– Protinho!

– Ainda bem que não doeu muito...

– A anestesia funcionou bem, e ele estava em uma posição boa. Agora é só seguir essas recomendações e voltar na semana que vem para tirarmos os pontos.

– Doutor, poderia ver?

– Claro, era um dente de siso bem saliente.